Na Paraíba, o aumento das pessoas em situação de rua é de 393% em sete anos. Só em João Pessoa, em um ano, o aumento foi superior a 70%. População em situação de rua cresce 400% em sete anos
Os versos escritos por João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina, há mais de 70 anos, descrevem a realidade de um Brasil esquecido, onde a pobreza no interior do Nordeste condenava a uma morte lenta e silenciosa. Hoje, nas ruas das grandes cidades, a miséria se renova. A fome, que um dia atingiu os severinos do Sertão, invade as esquinas urbanas. As caras mudaram, mas a história parece se repetir.
Na Paraíba, o aumento das pessoas em situação de rua é de 393% em sete anos. Só em João Pessoa, em um ano, o aumento foi superior a 70%, de acordo com levantamento do Núcleo de Dados da Rede Paraíba.
Nas calçadas, pessoas em situação de rua. O desemprego e a falta de moradia trazem de volta o retrato de uma população que, assim como os severinos de João Cabral, ainda morre um pouco por dia.
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia”.
Luciano Araújo dribla a falta de dinheiro com um trabalho improvisado. O dinheiro mal dá pra comer e também não é suficiente para pagar um lugar para morar. Pessoas como ele deixam de enxergar a rua como um local de passagem e a transformam em moradia. Mas a história deles não se resume a isso.
“É muito difícil estar na rua. Não é bom não. Porque a rua é malandra. Entendeu? Os caras querem me matar, furar o cara. O cara não consegue dormir. Eu passo a noite mais acordado do que dormindo. Mas é muito difícil. Eu sempre tive um teto, eu fui casado, tenho três filhas, graças a Deus eu tenho três filhos maravilhosos na minha vida”, desabafa.
Assim como Luciano, muitos enfrentam o mesmo problema: a falta de trabalho, de dinheiro, de alimentação. A falta, principalmente, de um lar.
Nos últimos sete anos, nunca foi tão alto o número de pessoas vivendo nas ruas. Na Paraíba, mais de 800 pessoas vivem nessa condição. Em João Pessoa, cerca de 400 pessoas não têm onde morar. Para especialistas e autoridades, esse índice pode ser ainda maior.
Durante o dia, o acolhimento vem do Centro POP, um espaço gerido pela gestão municipal com objetivo de prover comida e um lugar para tomar banho, mas não funciona como abrigo.
Amparo dos Santos, coordenadora do Centro POP, explica que o fluxo no local é constante. “Nós atendemos diariamente 150 pessoas, incluindo os atendimentos extras que são os encaminhamentos para retirada de documento, para CAPS, para outras áreas da saúde, encaminhamento para o acolhimento e oferecemos 50 cafés da manhã e 120 almoços todos os dias de segunda a sexta. E ainda à tarde a gente tem uma sessão de cinema que serve um lanche”, detalha.
Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro POP
Durante as noites, o que salva é a mão voluntária de quem, sem obrigação nenhuma, vai às ruas e chega a locais onde o estado falta e oferece o que a sociedade nega. É o caso do Projeto Multiplicação, que está em atuação nas ruas de João Pessoa há quase dez anos. O grupo leva comida para as pessoas em situação de rua da capital uma vez por semana.
“Não é só questão da entrega de alimento, é o acolhimento, conhecer a realidade que eles passam cada dia, conhecer suas dificuldades, multiplicar o amor de Jesus, ouvir o que eles têm para dizer, eles que são tão invisíveis perante a sociedade, mas para nós eles são os nossos irmãos que precisam de muito amor. Muitos deles a gente já conhece pelo nome, conhece um pouco da sua história. Então a gente já tem um carinho e muita consideração por eles, tanto que toda quinta-feira é sagrado a gente estar aqui”, detalha Karol Viana, assistente social e voluntário do Projeto Multiplicação.
O cenário se repete em inúmeras cidades brasileiras, sobretudo nas capitais. Apesar do aumento expressivo de 70% de pessoas em situação de rua em João Pessoa, entre 2022 e 2023, a capital da Paraíba ainda é a que apresenta os menores números e índices do nordeste. Os piores percentuais estão em Sergipe, Bahia e Ceará.
Apesar da variação numérica, todas têm o mesmo problema: a baixa coleta de informações. E, sem conhecimento, não é fácil resolver o problema.
Liana Espínola, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero, Diversidade e Igualdade Racial do Ministério Público da Paraíba (MPPB), explica o que, geralmente, faz com que essas pessoas continuem na rua.
“Existem dados de pesquisas anteriores, inclusive do Observatório do Ministério de Direitos Humanos, que diz que o principal motivo dessas pessoas estarem na rua, que todo mundo acredita que é o vício em álcool e drogas, mas na verdade é o rompimento de vínculos familiares. Os números das pessoas em situação de rua aumentaram muito depois da pandemia, a gente sabe dos fatores que ocorreram nesse período.
Nas sombras de prédios ou no silêncio da noite, a vida persiste, maltratada por uma sociedade que ainda não aprendeu a enxergar seus severinos.
“São invisíveis. População de rua é uma demanda muito grande. As políticas públicas não atendem como deveriam, não atendem. A necessidade é muito grande, são muitas ausências, por isso a questão da invisibilidade, que eu digo muito, eles deitam no lugar que a gente cospe. A gente passa por eles como se não fosse ninguém”, desabafa Amparo dos Santos.
Com G1 Pb