A médica e pesquisadora paraibana Adriana Melo se tornou uma das maiores autoridades no estudo do Zika Vírus. Ela relembrou os detalhes do estudo em entrevista ao videocast Saúde Alerta. Pesquisadora Adriana Melo descobriu relação entre Zika e microcefalia
Reprodução/Redes sociais
A médica e pesquisadora paraibana Adriana Melo fez história ao descobrir a relação entre o Zika vírus e a microcefalia. Em meio a uma crise de saúde pública, a pesquisadora foi a primeira cientista a descrever a doença Zika congênita, que elevou o número de crianças brasileiras que nasceram com malformações no cérebro.
Em entrevista ao videocast Saúde Alerta, da Rede Paraíba, a pesquisadora relembrou os momentos de incerteza e tensão com a descoberta da relação entre o vírus e a malformação de bebês, além de contar detalhes sobre os bastidores da pesquisa.
Em 2015, o Zika vírus gerou um surto de casos de microcefalia, especialmente no Nordeste do país, que levou o Governo Federal a declarar estado de emergência. Logo depois, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também reconheceu a gravidade da situação.
A paraibana Adriana Melo, que cresceu no município de Pocinhos, ajudou a revelar a relação entre o vírus e a malformação cerebral. A pesquisadora custeou exames com recursos próprios, alertou as autoridades sobre o perigo do vírus e conviveu de perto com as famílias que recebiam, com várias incertezas, o novo diagnóstico.
Reconhecida nacionalmente e internacionalmente, a médica explica que os cuidados com os pacientes transformaram sua vida. Além de se dedicar ao conhecimento científico, a pesquisadora conta que também teve em mente a qualidade de vida daquelas crianças, que começaram a ser atendidas na instituição filantrópica que preside em Campina Grande.
“Eu acho que me mudou muito como pessoa. Realmente, você muda, né? Te muda em termos de humanidade, de você ser mais humano, olhar com um olhar diferente, não julgar tanto. Às vezes uma mãe cansa e ela tem todo o direito de cansar, porque não é fácil ser mãe 24 horas de uma criança com deficiência”, afirma Adriana.
Segundo episódio do videocast Saúde Alerta: Adriana Melo fala sobre pesquisa no Brasil
Como a médica descobriu a relação entre Zika e microcefalia?
Em 2015, a médica Adriana Melo identificou uma malformação anormal no cérebro de um bebê quando atendia uma paciente em uma clínica particular. A médica pensou que poderia ser algo genético, solicitou uma pesquisa de infecções, além de uma ressonância para tentar identificar o que estava acontecendo com aquele feto.
Apesar de muito se falar em microcefalia, a médica explica que o primeiro caso não tinha essa malformação específica, e sim um dano cerebral atípico, que não era visto em nenhuma outra doença. Acostumada a ver dezenas de cérebros de fetos por dia, a médica logo percebeu que estava diante de um caso diferente.
Adriana Melo conta que liberou a paciente após a consulta, mas não conseguiu parar de pensar no caso. Em uma sexta-feira, Adriana decidiu ligar para a gestante e foi fazendo perguntas até encontrar a resposta.
“Eu disse: ‘Menina, o que é que tu teve de diferente? O que é que tu teve de diferente durante a gravidez? Me conta’. A paciente disse: ‘Eu só tive Zika com sete semanas, inclusive eu disse ao meu obstetra. Mas ele respondeu que, por enquanto, não tem nada’. Então, tinha um fenômeno bem documentado. Aí eu fui ler sobre Zika e não tinha nada”, afirmou a pesquisadora.
A médica passou aquele fim de semana pesquisando artigos científicos sobre a relação entre a Zika e a gestação humana, mas não encontrou grandes resultados. Até que a pesquisadora descobriu um estudo científico que introduziu o vírus de uma família parecida com o Zika em ovelhas, o que resultou em fetos com malformações semelhantes às registradas em fetos humanos.
Na mesma época, Adriana lembra que o estado de Pernambuco divulgou uma nota registrando o nascimento de 19 crianças com microcefalia e danos cerebrais semelhantes. Ela afirma que acionou a Secretaria de Saúde da Paraíba, mas foi informada que já haviam conversado com o estado vizinho, e eles achavam que os casos eram causados por rubéola.
“O dano era totalmente diferente do dano de rubéola. Não tinha sentido, era algo novo. E se tinha algo novo que estava circulando, eram dois vírus: Zika e Chikungunya”, lembra Adriana.
A médica, então, decidiu que era necessário fazer um novo exame para descobrir se alguma doença havia passado da mãe para o bebê, ainda dentro da barriga da gestante. O equipamento necessário para o exame estava disponível apenas em laboratórios oficiais do Ministério da Saúde e havia uma urgência por causa do surto.
Na corrida contra o tempo, ela conversou com o médico e apresentador do videocast Saúde Alerta, André Telis, que a colocou em contato com membros da FioCruz e conseguiram um laboratório para realizar o exame. Ela coletou o líquido amniótico de duas pacientes grávidas e enviou para análise na Fiocruz no Rio de Janeiro.
“Uma coisa que é transmitida por um vírus, por um mosquito, a gente tem que informar essas mães. Não dá pra ficar esperando muito tempo, porque as mães vão ser contaminadas”, afirmou a médica.
Ela também explica que contou com a ajuda de grandes especialistas da área de infectologia congênita no cérebro e ressonância magnética para avaliar os casos. Com o apoio do estado, conseguiu convencer duas gestantes cujos fetos apresentavam malformação, levou elas até os pesquisadores e realizaram diversos ultrassons para entender o que estava acontecendo.
Em janeiro de 2016, os primeiros achados de Zika congênita foram publicados em um artigo científico.. Apesar da conquista, a médica lembra que o caminho não foi fácil para uma pesquisadora nordestina e que não tinha vínculos acadêmicos.
“Eu tinha dois doutorados e um pós-doc, quando a doença chegou. Era uma mulher nordestina que não tinha vínculo universitário, na época não era professora, era como se eu não pudesse estar ali. Eu sempre senti isso, a minha presença ali parece que sempre incomodou”, afirmou Adriana.
Do primeiro caso até hoje
Catarina foi a primeira criança diagnosticada com Zika Congênita no mundo
Conceição Alcantara/Arquivo pessoal
O primeiro caso de Zika congênita foi diagnosticado em Catarina Maria Alcantara Oliveira. A mãe, Maria da Conceição Matias, teve manchas vermelhas espalhadas pelo corpo durante a gestação, que apontaram para o diagnóstico da Zika, doença causada pela picada no mosquito Aedes aegypti, que foi confirmado após um exame de sangue.
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Após o nascimento, Conceição, que é formada em fisioterapia, decidiu iniciar um tratamento com estimulação motora na filha em casa, contrariando todas as expectativas negativas.
A médica Adriana Melo explica que, quando começaram a estudar o caso, o entendimento era que essas crianças teriam atendimento paliativo, com objetivo de dar qualidade de vida. No entando, ela começou a receber vídeo de Conceição, e da evolução da filha dela. Foi aí que a médica percebeu que essas crianças precisavam de um cuidado intensivo, em que fossem habilitadas funções básicas, como, por exemplo, deglutir, ouvir e andar.
Hoje, Adriana Melo é a presidente do Instituto Paraibano de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ipesq), um centro de referência em atendimentos à crianças com microcefalia, localizado em Campina Grande. Segundo a pesquisadora, hoje são atendidas cerca de 100 crianças no local.
Ao longo dos anos de existência do instituto, o projeto chegou a ser levado para outros estados do país, no Nordeste e Sudeste. Além disso, segundo ela, cinco crianças do continente africano também são atendidas pelo Ipesq, que além da assistência em saúde, também envia recursos para compra de alimentos.
O Ipesq é uma organização civil de fins não econômicos, de caráter filantrópico, fundada em 2008. O instituto recebe recursos através de doações de padrinhos, que doam valores por meio do projeto Amor Sem Dimensões.
A Zika congênita como ameaça
Médica Adriana Melo em 2016
Artur Lira/G1
Após conseguir confirmar sua tese, a pesquisadora Adriana Melo conta que ainda enfrentou pelo menos mais duas grandes dificuldades nesse caminho: convencer as autoridades sobre a relação entre o Zika vírus e a microcefalia, e pensar políticas públicas para essas crianças.
A médica explica que, quando a doença foi descoberta, em meados de 2014, todos achavam que a Zika era uma espécie de dengue mais leve. Já naquela época, Adriana lembra que existia uma dificuldade em convencer as autoridades de que havia um novo vírus.
“O primeiro grande desafio foi convencer as autoridades de que realmente, o vírus – a gente já sabia que estava circulando – poderia causar danos ao cérebro do feto. Depois, o último grande desafio foi pensar em políticas públicas para essas crianças, porque uma doença nova… Como é que a gente ia prestar assistência se a gente tem, ainda hoje, uma grande dificuldade em cuidar de crianças com deficiência no Brasil?”, afirmou Adriana.
Adriana afirma que ainda existem casos de microcefalia e critica a falta de investigação aprofundada em alguns deles. Segundo ela, é fundamental que as mães saibam se a doença foi causada por zika, toxoplasmose, alcoolismo materno ou até mesmo por fatores genéticos.
“Sempre me doeu muito, e eu dizia isso muito antes do Zika: enterrar uma pessoa sem saber de quê morreu. Porque um país que não conhece as suas causas de mortalidade não vai mudar nunca. É como se fosse normal pra gente. Eu não acho isso normal. Minha cabeça de médica, pesquisadora e mãe junta tudo num canto só. Eu não acho normal você não saber do que essa pessoa tá doente, não investigar a fundo. Então, a gente normalizou isso”, critica a pesquisadora.
O que é a Zika congênita?
O Ministério da Saúde descreve a Zika congênita como um conjunto de anomalias que podem incluir alterações visuais, auditivas e neuropsicomotoras. A doença é causada pela exposição do feto à infecção pelo Zika vírus durante a gestação.
Em novembro de 2015, a doença foi considerada um evento de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e, em fevereiro do ano seguinte, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que se tratava de uma emergência internacional.
O Zika vírus é transmitido ao ser humano pela picada da fêmea de mosquitos, especialmente da espécie Aedes aegypti. O vírus também pode ser transmitido por meio de relações sexuais e transfusão sanguínea.
Segundo um boletim epidemiológico, divulgado em março pelo Ministério da Saúde, foram notificados 22.251 casos suspeitos de Zika congênita entre os anos de 2015 e 2023. Cerca de 3.742 (16,8%) desses casos foram confirmados para alguma infecção congênita. Do total de casos confirmados, 1.828 (48,9%) foram classificados como casos de Zika Congênita, e destes, 1.380 (75,5%) ocorreram na Região Nordeste.
O documento concluiu que o número de casos suspeitos notificados estão reduzindo desde 2017, mas é necessário continuar vigilante para identificar novos casos e surtos. Do total de casos notificados entre 2015 e 2023, 2.877 (12,9%) ainda continuam em investigação.
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