A luta pela efetivação dos direitos das pessoas LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, assexuais e outras orientações sexuais) no Brasil é marcada por avanços, retrocessos e inúmeros desafios. Neste sentido, a criação, em janeiro de 2023, de uma secretaria nacional encarregada de desenvolver políticas públicas específicas para o enfrentamento ao preconceito e à discriminação e a promoção dos direitos deste segmento da população foi recebida como uma conquista.
Comandada por uma travesti, a jornalista paraense Symmy Larrat, a pequena equipe da secretaria teve que contornar a falta de recursos para dar conta de suas atribuições (para este ano, o orçamento previsto é de pouco mais de R$ 27 milhões). E enfrentou a falta de informações confiáveis sobre a situação da população LGBTQIA+ no país.
Notícias relacionadas:Dia do Orgulho LGBTQIA+: país tem longa história de luta por direitos.Conheça alguns dos principais marcos do movimento LGBTQIA+ brasileiro.Somar para fortalecer é tema da 29ª Parada LGBTQIA+ do Rio.Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o coordenador-geral de Acompanhamento de Parcerias da secretaria, Hiago Mendes, afirmou que a falta de dados confiáveis dificultou a formulação das primeiras políticas públicas, retardando a implementação de ações estratégicas que, segundo ele, avivam a resistência de grupos conservadores. “Há uma enorme resistência por parte da extrema direita em relação às pautas da população LGTBQIA+, sobretudo em relação àquelas que dizem respeito às pessoas trans”, declarou Mendes ao fazer um balanço sobre os programas que a secretaria está implementando, como o de promoção do emprego e renda e de apoio financeiro às casas de acolhimento.
A entrevista integra a série de matérias que a Agência Brasil publica neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, nesta sexta-feira (28).
Agência Brasil: Ao assumir a secretaria, em janeiro de 2023, a secretária nacional Simmy Larrat acusou a falta de informações públicas confiáveis sobre as especificidades da população LGBTQIA+. Na ocasião, ela dise que isso refletia uma política de apagamento deste segmento populacional. Considerando que a Estratégia Nacional de Enfrentamento à Violência Contra Pessoas LGBTQIA+, instituída em dezembro de 2023, prevê o monitoramento e a sistematização de indicadores de violência, algo mudou neste sentido desde então? Temos, hoje, dados mais confiáveis?
Hiago Mendes: A falta de dados confiáveis é algo muito grave e se refletiu em uma dificuldade inicial na formulação de políticas públicas. Desde o início da atual gestão, as ações desenvolvidas pela secretaria têm sido pensadas para tentar sanar as dificuldades na obtenção de dados. No âmbito das políticas que a secretaria já lançou, há formulários com os quais procuramos obter informações sobre as pessoas LGBTQIA+. As estratégias nacionais de Enfrentamento à Violência e de Empregabilidade e Geração de Renda, por exemplo, estão voltadas também para estimular a produção desses dados. E temos avançado na articulação política para construir mais informações relativas à população LGBTQIA+ a partir dos registros oficiais da segurança, saúde e assistência social. Em algumas áreas, avançamos mais. Em outras, ainda estamos conversando, mas é inegável que houve um avanço [geral], embora ainda não seja o cenário que consideramos desejável, razoável, de informações fidedignas.
Agência Brasil: O que as informações já obtidas dizem sobre o acesso da população LGBTQIA+ às políticas pública e sobre a efetivação dos direitos deste grupo de pessoas?
Mendes: Conforme vamos avançando na construção das políticas públicas, há uma melhora na recepção de dados, mas é preciso considerar que, a partir do início de 2023, saímos de uma situação em que, comprovadamente, não havia uma política pública nacional para a população LGBTQIA+. Há auditorias do Tribunal de Contas da União apontando isso. Além disso, em muitos aspectos, a equipe da secretaria começou a trabalhar não do ponto zero, mas de um ponto negativo, pois serviços que existiam há anos tinham sido desestruturados. Na medida em que programas nacionais como o Empodera+, o Acolher+ e o Bem Viver+ estão começando a ser executados, a população LGBTQIA+ vai tendo mais acesso [ao exercício da] cidadania e aos seus direitos e, simultaneamente, observamos uma melhora na obtenção das informações.
Agência Brasil: Este acesso ainda é precário?
Mendes: Sim. Este acesso ainda é precário na maior parte do país. As iniciativas que estão em curso pela secretaria visam sanar essa dificuldade da população LGBTQIA+ acessar direitos básicos, como o direito à saúde, à segurança e a uma vida digna, com trabalho e renda. São estas as pautas que movem nossos esforços ao elaborarmos e executarmos as políticas públicas.
Agência Brasil: Em fevereiro deste ano, o governo federal instituiu a Estratégia Nacional de Trabalho Digno, Educação e Geração de Renda para Pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social. Os dois comitês responsáveis por apoiar a implementação das ações e programas que promovam a empregabilidade só foram instituídos na semana passada, quatro meses depois. Qual o motivo da demora? Houve outros avanços neste intervalo de tempo?
Mendes: A estratégia nacional de empregabilidade é o primeiro passo de uma política mais ampla e que envolve uma série de ações governamentais. Ela delineia o caminho que estamos considerando conveniente seguir e se reflete em outras ações governamentais, dentre as quais o Empodera+, o programa-piloto de geração de trabalho digno e renda para pessoas LGBTQIA+. Ou seja, as ações estão todas articuladas. De forma que, após o lançamento da Estratégia Nacional de Trabalho Digno, Educação e Geração de Renda, trabalhamos para construir e lançar o [projeto-piloto] Empodera+, que congrega essas ações, incluindo a preparação das pessoas para o mundo do trabalho, com a oferta de bolsas e cursos. Isso demandou um certo tempo, exigindo um período de preparação e de articulação política, burocrática.
Agência Brasil: Quantos estados já aderiram ao Empodera+? A secretaria está conversando com outras unidades federativas para que participem do programa? Qual é a expectativa da secretaria quanto a isso?
Mendes: Os governos do Ceará, Espírito Santo, Maranhão e Pará já aderiram. Estamos conversando com o Rio Grande do Sul, articulando para lançar o programa [no estado] como parte dos esforços de reconstrução após a tragédia climática que acometeu o estado. Nossa expectativa é que esse programa dê esperança às pessoas LGBTQIA+ que, muitas vezes, vivem excluídas do mercado de trabalho e das oportunidades de emprego e de geração de renda. Para que elas tenham a oportunidades de ter uma vida digna e de exercer plenamente a cidadania a partir do trabalho e da geração de renda.
Agência Brasil: Há resistências políticas à implementação da Estratégia? Quais as principais dificuldades para implementá-la?
Mendes: Temos uma primeira grande dificuldade, de ordem orçamentária. Temos trabalhado para ampliar o orçamento [da secretaria] a fim de termos condições de atender mais localidades com o programa. E há a resistência política. Creio estar muito nítida a existência de uma enorme resistência por parte da extrema direita em relação às pautas da população LGTBQIA+, sobretudo em relação àquelas que dizem respeito às pessoas trans.
Agência Brasil: Como está a execução do Programa Nacional de Fortalecimento de Casas de Acolhimento LGBTQIA+? Em maio, ao anunciar o repasse de R$ 1,4 milhão para 12 espaços, a própria secretária Symmy Larrat disse que, embora histórica, a entrega não seria suficiente para solucionar os problemas. Há previsão da liberação de mais recursos para outras entidades? E se sim, a partir de quando?
Mendes: O programa Acolher+ presta auxílio emergencial a casas de acolhimento geridas pela sociedade civil por todo o Brasil. São casas que acolhem pessoas expulsas de seus núcleos familiares ou sociais e comunitários por conta de suas orientações sexuais ou identidades de gênero. Essas pessoas se veem desamparadas, em uma situação muito complicada e as casas de acolhimento funcionam como foco de enfrentamento à violência e à vulnerabilidade social, cumprindo a função de receber e ajudar essas pessoas a superarem essa situação, que é recorrente.
O Acolher+ foi implementado para atender a um certo número de casas de acolhimento que [por falta de recursos] estavam em vias de fechar ou de diminuir seus atendimentos. Iniciamos o programa com o orçamento de que dispomos e que consideramos insuficiente, levando em conta a demanda. O número de casas atendidas é insuficiente, mas, neste momento, além de estarmos nos articulando para conseguirmos mais recursos, estamos canalizando nossas energias para executar o processo com as organizações sociais já atendidas, para construirmos uma tecnologia de política pública, de acolhimento para as pessoas LGBTQIA+.
Como disso antes, muito do que estamos fazendo são iniciativas pioneiras [no país]. Então, quando não estamos desenvolvendo novas políticas públicas, estamos intensificando algumas que já existiam. Qualquer que seja o caso, somos desafiados a trabalhar com uma pauta que não tem uma política nacional consolidada, uma lei consolidada, como é o caso da assistência social; da igualdade racial; da política de mulheres. No Brasil, a pauta LGBTQIA+ ainda não conta com este peso. Então, todo esforço de construção que estamos fazendo é nesse sentido.
Então, ao iniciar o programa Acolher+ com esse número de casas, estamos, em verdade, construindo uma nova política pública com reflexos a longo e médio prazo, e não apenas emergencial. Daí porque, neste momento, estamos concentrados em consolidar esse trabalho para só então pensarmos em uma expansão.
Agência Brasil: Como se dá a questão da transversalidade da pauta LGBTQIA+ na Esplanada dos Ministérios? Outras pastas além do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania a acolhem, incluindo este olhar a seus próprios programas?
Mendes: Todos os programas desenvolvidos no âmbito da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ passam por uma articulação política entre os diversos ministérios. Lidamos com uma pauta que atravessa a todas as camadas da política pública. Esta semana, por exemplo, ocorreu, no Itamaraty, um seminário sobre políticas LGBTQIA+ e política externa. O evento foi fruto desta articulação. Também temos uma relação muito importante com o Ministério do Trabalho e Emprego [MTE]. Temos um trânsito muito bom na Esplanada dos Ministérios que, de modo geral, tem sido bastante receptiva à pauta LGBT. Lógico que isso varia de acordo com os programas e as ações em que estamos jogando mais peso em determinado momento.
Agência Brasil: Como estão os preparativos para a 4ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, prevista para ocorrer em outubro de 2025, em Brasília?
Mendes: A próxima conferência nacional promete marcar o retorno da participação social ao processo de construção das políticas públicas, movimento que é uma tônica da atual gestão federal e que é muito importante para a população LGBTQIA+. Nossa expectativa é fazer uma grande conferência, recebendo tanto movimentos políticos e sociais organizados, quanto a sociedade em geral.
A última conferência ocorreu em 2016. É muito importante voltarmos a contar com esse espaço de participação social para que a sociedade possa apresentar suas demandas aos governantes.
Estamos no período de convocatória das conferências estaduais municipais – etapas que antecedem o evento nacional – e acho importante frisarmos que essas etapas são fundamentais para a realização da conferência nacional. Por isso, temos dado apoio aos estados e municípios, para que realizem suas conferências.
Agência Brasil: Fica aí, portanto, um convite para qualquer pessoa interessada no tema participar das pré-conferências.
Mendes: Sim. A participação neste processo é aberta, observada a questão dos regimentos, do direito a votos e de representação. É importante que a população conheça e se engaje com a pauta LGBTQIA+. Muitas vezes, nos imputam temas que nada tem a ver com aquilo que estamos discutindo porque nos interessa de fato. O que nos importa é o enfrentamento à violência, a empregabilidade e geração de renda, o pleno acesso a direitos, o exercício de nossa cidadania. Daí a importância de toda a sociedade conhecer também o que o governo federal está realmente propondo e fazendo para as pessoas LGBTQIA+, compreendendo a política para além de uma agenda de ódio.
Agência Brasil: Há algo mais que o senhor queira acrescentar?
Mendes: Só enfatizar que o serviço que é oferecido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Disque Direitos Humanos, o Disque 100, é uma importante fonte de informações sobre as violações aos direitos humanos e sobre as violências que a população LGBTQIA+ sofre. Então é muito importante a divulgação desse serviço, do Disque 100. Ele serve não só para que as pessoas denunciem violações a seus direitos, mas também para que o governo tome conhecimento, possa tomar providências e obter as informações sobre as violações mais frequentes.